"Quando se fazem algumas referências a atuação de Edgard Leuenroth, quer
como militante proletário e anarquista, não pode deixar-se de mencionar a
greve geral que aconteceu em São Paulo no ano de 1917, quando paralizou
inteiramente todo o comércio e a indústria desta Capital. Assim também,
quando se faz menção daquela greve geral, o nome de Edgard Leuenroth aparece
estritamente ligado àqueles acontecimentos. O motivo dêsse estrito ligamento
assenta em que êle foi considerado o único responsável por aquela greve que
chegou a causar pânico ao patronato e ao próprio Estado. Em resposta a uma
dessas referências Edgard enviou ao jornal Estado de São Paulo a seguinte
carta":
"Citado nominalmente em Notas e Informações de 2 do corrente, com referência
à minha participação na greve geral de 1917, sinto-me na obrigação de vir a
público, a fim de contribuir com alguns esclarecimentos, para que o episódio
citado seja registrado em tôda a inteireza de verdade histórica.
Torna-se necessário, por isso, ser permitido pronunciar-me, embora
sumariamente, sôbre a origem e o desenrolar dêsse acontecimento de
excepcional relevo na história da vida coletiva de São Paulo.
Diga-me, antes de tudo, que a greve geral de 1917 não pode, de maneira
alguma, ser equiparada sob qualquer aspecto que seja examinada, com outros
movimentos que posteriormente se verificaram como sendo manifestações do
operariado.
Isso não, absolutamente não! A greve geral de 1917 foi um movimento
espontâneo do proletariado sem a interferência, direta ou indireta, de quem
quer que seja. Foi uma manifestação explosiva, consequentemente de um longo
periodo da vida tormentosa que então levava a classe trabalhadora.
A carestia do indispensável à subsistência do povo trabalhador tinha como
aliada a insuficiência dos ganhos; a possibilidade normal de legítimas
reivindicações de indispensáveis melhorias de situação esbarrava com a
sistemática reação policial; as organizações dos trabalhadores eram
constantemente assaltadas e impedidas de funcionar; os postos policiais
superlotavam-se de operários, cujas residências eram invadidas e devassadas;
qualquer tentativa de reunião de trabalhadores provocava a intervenção
brutal da Policia. A reação imperava nas mais odiosas modalidades. O
ambiente proletário era de incertezas, de sobressaltos, de angústias. A
situação tornava-se insustentável.
A notícia da morte de um operário, assassinado nas imediações de uma fábrica
de tecidos do Brás, divulgou-se como um desafio à dignidade do proletariado.
Caracterizou-se como um violento impacto emocional sacudindo todas as
energias. O enterro dessa vitima da reação foi uma das mais impressionantes
demonstrações populares até então verificadas em São Paulo. Partindo o
feretro da Rua Castano Pinto, no Brás, estendeu-se o cortejo, como um oceano
humano, por toda a avenida Rangel Pestana até a então Ladeira do Carmo em
caminho da Cidade, sob um silencio impressionante, que assumiu o aspecto de
uma advertencia. Foram percorridas as principais ruas do centro. Debalde a
Policia cercava os encontros de ruas. A multidão ia rompendo todos os
cordões, prosseguindo sua impetuosa marca até o cemitério. À beira da
sepultura revezaram os oradores, em indignadas manifestações de repulsa à
reação.
No regresso do cemitério, uma parte da multidão reuniu-se em comicio na
Praça da Sé; a outra parte desceu para o Brás, até à rua Caetano Pinto,
onde, em frente à casa da familia do operario assassinado, foi realizado
outro comicio. Sem que se possa precisar detalhes, verificou-se uma agitação
entre a multidão estacionada nas imediações da avenida Rangel Pestana. Havia
sido assaltada uma carrocinha de pão. Essa ocorrencia teve o efeito da
chispa lançada ao rastilho de polvora. Parece ter servido ela de exemplo e
estimulo para que a mesma ação fosse praticada em muitas partes da cidade.
Feito que aconteceu com rapidez fulminante, como se um veiculo de
comunicação de excepcional capacidade pusesse em contato todo o elemento
popular paulistano. As fábricas e oficinas esvaziavam-se, enquanto as ruas
se povoavam de multidões, movimentando-se agitadas em todos os sentidos. Foi
quando mais se intensificou a repetição do episódio do assalto do carrinho
de pão, sendo atingidos mercearias, depositos de mantimentos, armazéns, etc.
Paralizava-se a vida laboriosa de São Paulo que não pode parar, para dar
lugar a uma convulsão popular sem precedentes na vida paulistana.
A Policia entrou em ação. Começaram os choques com as multidões. Dos
encontros resultaram vitimas de ambos os lados.
Os operários não se podiam reunir para tomar resoluções. Cada corporação
lançava os seus memoriais de reivindicações, quase todas coincidentes, na
maioria delas. Mas uma ação de conjunto, coordenada para a determinação do
objetivo comum, não se tornava exequivel no momento, devido à
impossibilidade realização de assembléias sindicais.
Foi então que se constituiu o Comitê de Defesa Proletaria, resultante de uma
reunião clandestina de militantes de várias categorias sindicais. Sua função
não seria de órgão diretor para expedir palavras de ordem. Sua missão seria
de um nucleo de relações e coordenador das reivindicações dos trabalhadores
em agitação e privados de seus sindicatos e de seu organismo federativo. De
conformidade com essa característica, seu primeiro trabalho foi reunir em um
único memorial as reivindicações comuns a todas as categorias profissionais,
constantes de boletins por elas divulgados, e que, anteriormente, tinham
sido objeto de exame nas organizações operárias, antes de seu fechamento.
Constavam dessas reivindicações generalizadas, entre outras, a jornada de 8
horas, aumento dos salários, redução dos alugueis, normalização do trabalho
das mulheres e dos menores, melhoramento dos locais de trabalho. Encabeçavam
essas reivindicações as exigências do respeito ao direito de organização e
de reunião, e a libertação imediata de todos os operários encarcerados. As
reivindicações, especificas de cada profissão seriam acrescentadas pelas
mesmas. Embora a vigilância policial fôsse exercida com o maximo rigor, esse
memorial do Comitê da Defesa Proletaria teve a maxima divulgação entre os
proletarios em luta.
A situação ia se tornando cada vez mais grave com os choques entre a Policia
e os trabalhadores. O Comitê de Defesa Proletária, somente vencendo toda a
sorte de dificuldades conseguia realizar apressadas reuniões em pontos
diversos da cidade, às vezes sob a impressão congrangedora do ruido de
tiroteios nas imediações. Tornava-se indispensavel um encontro dos
trabalhadores, para ser tomada uma resolução decisiva. Surgiu, então, a
sugestão de um comicio geral. Como e onde? E como vencer os cercos da
Policia? Mas a situação, que se desenrolava com a mesma gravidade, exigia a
sua realização. O perigo a que os trabalhadores se iriam expor estava sendo
transformado em sangrenta realidade nos ataques da Policia em todos os
bairros da cidade, deles resultando também vitimas da reação, inumeros
operarios, cujo único crime era reclamarem o direito à sobrevivencia.
E o comicio foi realizado. O Brás, bairro onde tivera inicio o movimento,
foi o ponto da cidade mais indicado, tendo como local o vasto recinto do
antigo Hipodromo da Mooca. Foi indescritivel o espetaculo que então a
população de São Paulo assistiu, preocupara com a gravidade da situação. De
todos os pontos da cidade, como verdadeiros caudais humanos, caminhavam as
multidões em busca do local que, durante muito tempo, havia servido de
passarela para a ostentação de dispendiosas vaidades, justamente neste
recanto da cidade de céu habitualmente toldado pela fumaça das fábricas,
naquele instante, vazias dos trabalhadores que ali se reuniam para reclamar
o seu indiscutivel direito a um mais alto teor de vida. Não cabe aqui a
descrição de como se desenrolou aquele comicio, considerado como uma das
maiores manifestações que a história do proletariado brasileiro registra.
Basta dizer que a imensa multidão decidiu que o movimento somente cessaria
quando as suas reivindicações, sintetizadas no memorial do Comitê de Defesa
Proletária, fôssem atendidas.
O término do comicio teve o mesmo aspecto de que se revestiu o seu início. A
multidão se desdobrava em numerosas colunas que se punham em marcha, de
regresso aos bairros. Os militantes mais visados retiravam-se no meio de
grupos espontaneamente formados. Soube-se mais tarde que, em pontos
distantes do local do comicio, haviam-se realizado varias prisões.
A esta altura dos acontecimentos chegou ao conhecimento do Comitê de Defesa
Proletaria a iniciativa surgida no meio jornalistico de ser realizado um
encontro de uma comissão de jornalistas e o referido comitê de Defesa
Proletária. O convite foi feito por intermédio do diretor do jornal “O
Combate”, Nereu Rangel Pestana. O encontro foi marcado. Os membros do comitê
compareceram à reunião com a segurança de não serem presos, em virtude do
compromisso assumido pelo presidente do Estado com os jornalistas. O local
escolhido foi a redação de “O Estado de S. Paulo”, então situado na praça
Antonio Prado. A comissão de jornalistas era composta de representantes de
jornais diários da Capital e o Comitê de Defesa Proletária, pelos seguintes
elementos: Antonio Candeias Duarte, comerciário; Francisco Cianci,
litógrafo; Rodolfo Felipe, serrador; Gigi Damiani, pintor, diretor do jornal
libertário “La Bataglia”; Teodoro Municeli, diretor do jornal socialista
“Avanti”, e Edgard Leuenroth, jornalista, diretor do jornal anarquista “A
Plebe e secretario do comitê.
Na primeira reunião foi examinado o memorial das reivindicações dos
trabalhadores, apresentado pelo Comitê de Defesa Proletaria, que a comissão
de jornalistas estava encarregada de levar ao governo do Estado. A segunda
reunião teve o seu inicio retardado, em virtude da prisão de dois dos
membros do comitê de Defesa Proletaria ao sairem da redação, após a primeira
reunião. Os entendimentos seriam rompidos se esses dois elementos não fossem
imediatamente postos em liberdade. Essa resolução foi transmitida ao
presidente do Estado. A exigencia foi atendida, os elementos levados à
redação, e a reunião pôde ser realizada com breve duração, pois o governo
ainda não havia entregue a sua resolução.
A resolução da concessão das reivindicações dos trabalhadores foi dada por
intermédio da Comissão de Jornalistas, com a informação de que já estavam
sendo libertados os operários presos durante o movimento.
Foram realizados comicios dos trabalhadores em vários bairros para a decisão
da retomada do trabalho, que se iniciou no dia imediato.
São Paulo reiniciava suas atividades laboriosas. A cidade retomava o seu
aspecto costumeiro, restando, entretanto, a triste lembrança das vitimas que
haviam deixado lares enlutados.
Muito tempo ainda não havia decorrido, quando se verificou a minha prisão.
Iniciou-se então minha peregrinação pelos postos policiais, com o fim de
serem burlados os “habeas corpus” requeridos quando fui transferido para a
Cadeia Publica, hoje Casa de Detenção. Após seis meses, fui levado ao
Tribunal do Juri, para ser julgado pela estupida acusação de ter sido o
autor psiquico-intelectual da greve geral de julho de 1917. Fui absolvido
por unanimidade de votos, após dois adiamentos, com o intuito de impedir de
ter também como defensor, ao lado do dr. Marry Junior, o grande criminalista
dr. Evaristo de Morais.
Passado algum tempo, divulgou-se a notícia de deportação de alguns
militantes proletários para outros Estados.
Poderia ser mais detalhado, se isso fosse aqui cabivel, e se a renitente
crise de saude, que me detém em casa, não me impedisse de utilizar o
documentário de que disponho.
Isto o farei tão breve seja possivel, se conseguir avançar mais um pouquinho
alem do marco octogenario da vereda de minha vida...
Agora, julgo não ser descabido ocupar mais algumas linhas a propósito da
referencia sobre um meu encontro com o dr. Julio de Mesquita Filho, em
Campinas. Foi em abril de 1958, por ocasião da Exposição Retrospectiva do I
Centenário da Imprensa de Campinas. A organização do Certame foi confiada a
mim, na parte relativa à imprensa geral do Brasil, e ao senhor José da Costa
Mendes, a de Campinas. O dr. Julio de Mesquita Filho lá esteve para realizar
uma Conferência.
Foi quando se verificou a referida palestra com o dr. Mesquita sobre
episodios do movimento proletario. Prende-se um deles à greve geral de 1917,
e que serve como mais uma demonstração da mentalidade reacionária então
imperante. Quando nos reuniamos na redação do “Estado”, usavamos para nossos
apontamentos o mesmo papel destinado ao uso dos redatores e encabeçado com o
nome do jornal. A policia serviu-se disso para lançar a calunia de que o
jornal tinha ligações com a greve. Essa infamia foi denunciada com veemencia
pelo sr. Nereu Rangel Pestana, no jornal “O Combate”.
Um outro episodio, relembrado na minha palestra com o dr. Mesquita,
verificou-se em 1919, ano excepcionalmente agitado do movimento proletario
paulistano. Publicava-se, então, em edição diária, o jornal libertário “A
Plebe”, cujo aparecimento, sob minha direção, coincidiu com o inicio da
greve de 1917.
Certa noite, quando nos encontramos à lufa-lufa da preparação do jornal,
recebemos informação de que a sede do jornal seria invadida pela policia.
Efetivamente, a redação foi cercada por policiais, que ali permaneceram toda
a noite. Alguém, que estivera com a autoridade responsavel diligencia,
transmitiu-nos a estranha informação de que a policia somente invadiria a
redação às 6 horas da manhã, isso em respeito a uma determinação legal. Era
justificavel nossa estranheza, pois, naquele então, os assaltos a sede
sindicais e a domicilio de operarios, na calada da noite, estavam na ordem
do dia.
Mas há de registrar um outro aspecto desse episodio verificado naquela
memorial noitada de jornalismo proletario. Foi quando, esperando a entrada,
a qualquer momento, dos policiais invasores, alguém entrou apressado e, com
um todo de admiração, informou: o dr. Julinho está aí. De fato, ante a
admiração da autoridade, a improvisada redação do jornal proletaria recebia
a visita de um diretor de um dos maiores jornais do Brasil. O dr. Julio de
Mesquita Filho explicou que lá comparecia por ter sido informado do que
estava acontecendo. A todos cumprimentou, e, somente após demorada palestra,
deixava aquela velha casa do tempo de antanho, situada na rua das Flores,
desaparecida com a abertura da Praça Clovis.
E, às 6 horas da manhã, a policia invadia a sede da redação do histórico
jornal proletário".
TRAÇOS biográficos de um homem extraordinário. Dealbar [jornal], São Paulo,
17 dez. 1968, ano 2, n. 17.
2 Comments:
Algumas dicas.
A tipografia(a letra) está muito ruim. É um tipo dificil de ler e está muito, muito pequeno.
Depois, o texto está muito grande.
Tente ser mais suscinto, textos grandes assim são dificeis de se ler na internet, por n razões, e é dificil prestar atencao até o final, se algm ler ate o final.
Alguém pode explicar para o sujeito acima que o Dealbar é um jornal histórico do movimento do tempo da ditadura militar.
Não vi nenhum comentário interessante sobre o conteúdo proposto e veja apenas que destacou a forma.
Sugiro que voce faça e assine as alterações, pois seria uma boa contribuição.
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